Daniel Cancello
5 min readJul 1, 2020

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Reflexões sobre a Quarentena

A dinâmica do mundo foi completamente alterada num piscar de olhos por conta de um vírus que se espalhou por todos os cantos.

Interessante ver, dentro da quarentena imposta, como cada um tem lidado com isso, como cada um tem lidado consigo(?). Na China por exemplo, durante o confinamento, os divórcios dispararam. No Brasil sabe-se que a violência doméstica aumentou muito.

Sintomas.

Na minha casa arrumei o armário de potes; foi bem complicado controlar meu TOC; descobri que havia poucos potes com as tampas certas; e uma infinidade de potes e tampas aleatórias sem encaixe. Talvez o mundo esteja fazendo o mesmo, ajustando os ponteiros. De que serve um pote sem tampa? E uma tampa sem pote? É impossível ser feliz sozinho?

Sismólogos detectaram que a terra está tremendo menos, os ruídos em geral também diminuíram muito (Murray Schäffer, autor de O Ouvido Pensante, estaria em regozijo), e a poluição diminuiu drasticamente, atingindo os níveis que os órgãos competentes consideram razoável para a saúde do planeta Terra.

Muito mais do que “ver o lado positivo das coisas”, é curioso poder constatar, pelo menos uma vez na vida, como o alcance do impacto do ser humano no planeta nos passam despercebidos em tempos supostamente normais.

Pandas que vivem juntos em um zoológico em Hong Kong voltaram a acasalar após 10 anos, quando o parque estava vazio. A calmaria tem seus encantos antes secretos.

Foi a primeira vez que vi um beija-flor da janela do meu quarto. Ou, porque estou ficando bem mais em casa, ou porque eles estão mais à vontade numa cidade com menos gente nas ruas e muito menos ruído, não sei. Em São Paulo muita gente reclama de cantos de pássaros de madrugada (pra alguns isso é barulho), e hoje sabe-se que eles usam o silêncio da noite para se comunicar e acasalar. Não é de hoje que vivemos num lugar que as pessoas reconhecem os carros pelos modelos mas não reconhecem os pássaros pela aparência. Cabe aqui refletir um pouco sobre o que, porque e como aprendemos.

O artista John Koenig é inventor de palavras inauditas que descrevem sentimentos no Dicionário das Tristezas Obscuras, e inventou um termo que muito bem se encaixa no peculiar momento de quarentena causada pelo vírus Covid-19 no mundo.

Kenopsia

A atmosfera misteriosa e desamparada de um lugar que normalmente está cheio de gente, mas que agora está abandonado e quieto.

Outro dia tive que ir à farmácia para minha família em plena quarentena , contra minha vontade decerto, porque sou da turma que está respeitando com rigor as recomendações dos órgãos competentes. Sim, tem gente que está em negação, e esse seria um outro assunto longo que não cabe aqui. O trajeto de carro foi uma experiência deveras surreal, parecia que até o vento que circulava dentro do carro estava diferente, e talvez estivesse, já que tem menos carros nas ruas.

Isso me remeteu a esses turismos de guerra como Vietnã, Camboja ou mesmo Alemanha. Lugares com histórias marcantes de crueldade e sofrimento que depois de anos viram atrações para os viajantes. No caso o turista era eu, passeando no meio de uma guerra invisível, dentro da minha própria cidade, sentindo um frescor de novidade mórbida em ruas que já passei milhares de vezes. Só que nessa história a guerra não era causada intencionalmente pela burrice e ganância desse homem onipresente que habita em todos nós, e sim causada por um dito vírus, conceito que a gente aprende na escola e que só era lembrado na hora de colocar a mão na frente antes de espirrar.

Hoje muitos lugares estão em Kenopsia. Envoltos em mistérios e desamparo. No Brasil nem tanto…

Quem frequentava esses locais dantes habitados nem suspeitava do marasmo que reinaria nos dias vindouros.

Há quem vá além: 2020 (20 + 20 = 40). Quarentena.

Não sei se já estava nos astros, nas escrituras sagradas, Corão, numerologia, Vedas, Bíblia ou pergaminhos. As referências só servem quando queremos ver nossa opinião confirmada.

Eu torço pra que se organize melhor a vida, torço pela natureza, pela reorganização do homem nos espaços urbanos e naturais. Será possível barrar esse progresso sem pudores(?), que sob óticas mais humanistas muitas vezes podem ser considerados regressos. Como podemos falar em progresso se estamos destruindo a natureza e a nossa saúde? Que tipo de progressão é essa que está destruindo onde a gente mora?

Desde que comecei vagamente a entender o que estava por vir, comecei a tomar medidas radicais como não apertar a mão de amigos, e no início fui taxado de radical e chato, porém o “eu avisei” não serve pra nada além de prover um sentimento de razão inútil. Estamos todos no mesmo barco, com o vírus e com o governo.

Murray Schafer

Que efeitos colaterais insuspeitos que os excessos de ruídos causam no nosso corpo, mente e espírito?

Particularmente, sinto que sou da turma que está lidando bem com o confinamento.

Como disse uma amiga, em algum lugar no meu íntimo, era como se eu esperasse por isso. Pela oferta de tempo, por calmaria pra criar e poder expressar principalmente minha não-concordância com o jeito que as coisas estão dispostas. Quando digo as coisas, são fenômenos como o sistema financeiro, a distribuição urbana, a logística de trabalho, o consumo induzido e irrefreável, as propagandas empurradas, a guerra silenciosa da informação, entre várias outras “coisas”.

Harari, em “Sapiens”, diz que o homem começou a conseguir viver em grupos de mais de 50 pessoas quando começou a acreditar em ficções. As vezes creio que fomos longe demais nesse aspecto, e que estamos acreditando em ficções demais e esquecendo de algo essencial.

Kenopsia, na minha leitura de um termo recém cunhado, jovem, é esse misto de espanto com uma empolgação estranhada de algo novo inesperado, e da constatação da inexorável transitoriedade dessa vida que passa em lugares que não se sabem fora de nós.

Junto com a Quarentena veio um sentimento bom, das coisas poderem esperar, de ter um tempo de respiro. Eu não preciso tirar minha carteirinha de desconto pro ônibus Santos-São Paulo que eles tanto dificultam, eu não preciso fazer aquela consulta anual no dentista, e nem nada dos pequenos afazeres que me torturavam diariamente e não cabiam no escasso tempo que tinha entre tanto trabalho. Decisões mais sérias então nem se cogita, a economia está parada, e normalmente decisões sérias custam caro. Eu não preciso fazer uma série de coisas que tinha pra fazer, e que muitas vezes eram coisas impelidas por um sistema que talvez eu nem quisesse fazer parte, porque muitas dessas coisas demandam ir pra rua e agora não é hora. Eu não preciso visitar ninguém. Nem mesmo minha família.

A vida está em suspenso as decisões podem e até devem ser adiadas. Esqueçam a polarização de sentimentos, sentir-se aflito não ajuda em nada, podemos nos sentir relativamente em paz mesmo sabendo da terrível tragédia que esse vírus está causando pelo mundo.

Estou em Kenopsia; eu que sempre estava envolto de milhares de pessoas agora sinto essa atmosfera externa e interna; misteriosa, desamparada e abandonada. Quieto.

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